Anjo Guardião: V. já sabe qual é o seu anjo? (Clic): "Descubra seu anjo pelo mês de nascimento". (Monica Buonfiglio). Veja tb:“Conheça o Seu Anjo da Guarda".
Intróito: Lendo ou ouvindo falar sobre anjos e demônios, logo pensamos em figuras bíblicas do passado. No entanto, ainda hoje convivem conosco no cotidiano de nossa vida moderna. Carl Jung já dizia que o demônio pessoal se manifesta através de nossos personalíssimos humores, “(daí a animosidade!)” E destacava:
“Congratulamo-nos por haver atingido tal grau de clareza, deixando para trás todos os deuses fantasmagóricos. Abandonamos, no entanto, apenas os espectros verbais, não os fatos psíquicos responsáveis pelo nascimento dos deuses... Atualmente eles são chamados: fobias, obsessões, e assim por diante; numa palavra, sintomas neuróticos".
“Zeus não governa mais o Olimpo, mas o plexo solar e produz espécimes curiosos que visitam o consultório médico; perturba também miolos dos políticos e jornalistas, que desencadeiam pelo mundo verdadeiras epidemias psíquicas".
“Em lugar de convencer-se de que o 'daimon' é uma ilusão, deveria experimentar novamente a realidade desta ilusão. Deveria aprender a reconhecer essas forças psíquicas, e não esperar que seus humores, estados nervosos e idéias obsessivas próvem de modo penoso que ele não é o único senhor em sua própria casa”. [Cf. ‘O Segredo da Flor de Ouro’, p. 50/51. Vozes].
E Anna Sharp (amiga de Paulo Coelho) partilha suas experiências no Caminho de Santiago, em 'A Magia do Caminho Real’, que nos espelham reações e animosidades de nosso “daimon” pessoal. Ela nos mostra também como, em momentos de aflições, os anjos manifestam sua presença alentadora, através de pássaros.
Leia seu honesto e divertido relato e, (quem sabe?) você obtenha uma visão mais objetiva e atualizada sobre anjos e demônios, livre de preconceitos e antigos conceitos religiosos...
Luz, Amor e Paz! (Campos de Raphael).
‘Anjos e Demônios’ - (Anna Sharp).
“Por não estar acostumada aos hábitos espanhóis, caminhei durante uma eternidade de sete dias, sem encontrar ninguém"...
Acordava muito cedo, entre cinco e seis horas, e já partia, seguindo o mapa do caminho que atravessava bosques, montes e vales, passando por alguns povoados e poucas cidades grandes. Passei a mais horrível das solidões durante a primeira semana.
O medo terrível do desconhecido, atravessando florestas e subindo montanhas, seguindo trilhas que se perdiam dentro do mato, buscando as setas amarelas supostamente indicadoras do caminho, mas muitas vezes invisíveis, escondidas pela vegetação ou apagadas pelo tempo; passando por pueblos que pareciam fantasmagóricos com suas igrejas por vezes suntuosas, e casas medievais, portas e janelas sempre fechadas…
Não encontrava ninguém com quem pudesse conversar ou para me fazer sentir viva e construir, nem que fosse momentâneo, um laço de cumplicidade. Em alguns momentos pensava ter morrido, sem perceber, e vagar por mundos desconhecidos; em outros, vitima de algum encantamento, eu me tornava invisível; a cada momento passavam em minha mente mil fantasias de todas as ordens.
Sempre que chegava em algum povoado ou cidade, buscava, correndo, algum bar para comer ou me abastecer de comida. Os rostos estranhos me olhavam como se eu não existisse; tentava às vezes um sorriso como aproximação, mas sempre inutilmente.
Havia combinado, com Paulo [Coelho], ligar para certo número de telefone, de três em três dias, e dar a minha localização; quando isso acontecia, meu único contato com o mundo, mostrava-se lacônico ou indiferente aos meus esforços e queixas.
Passava por momentos de carência, quase enlouquecendo dentro daquela solidão total; a perda dos referenciais, a cada passo, me atirava mais e mais profundamente no desconhecido dentro e fora de mim.
Dentro de mim havia a certeza de que desta vez não haveria atalhos, nem ninguém para me dar “cola”. Minhas máscaras, assim como as lágrimas, foram caindo ao longo do Caminho, povoado apenas pela solidão.
Os rituais da Tradição e salmos através dos quais tinha que me dirigir a Deus, foram me distanciando Dele, até então amigo íntimo e companheiro de todas as horas; o 'Altíssimo' dos Salmos era um desconhecido para mim…
O Universo, simbolizado pela imagem de Cristo, com quem discutia, agradecia e pedia, parecia-me agora perdido num céu alto e distante, onde minha voz não era mais ouvida, por mais que berrasse e clamasse em direção ao Infinito. Ao vazio da paisagem árida que atravessava se unia agora o meu vazio interno…
Uma tarde, caminhando debaixo de um sol implacável, caí exausta sob o peso da mochila… Grossas lágrimas de desespero rolavam pelo meu rosto ardido e queimado pelo sol. Aquele vazio, a insegurança, o cansaço e o medo chegaram a níveis insuportáveis. Com uma semana apenas de caminhada, a impressão era de que já se havia passado anos desde que eu deixara o Brasil.
Soluçava alto como criança desamparada, amaldiçoando aquele “Senhor” que não me ouvia. Minhas forças haviam chegado ao final. Uma raiva incontrolável tomou conta de mim. Abri a mochila e aos arrancos tirei os rituais atirando-os fora, pisando, quebrando e rasgando os salmos, enquanto gritava e blasfemava com violência.
Perdi totalmente o controle, lançando-me no chão duro cheio de pedras e espinhos, sem nada sentir, berrando e xingando numa catarse nunca vivida antes… Durante muito tempo fiquei ali deitada na terra, chorando e pedindo ajuda, um sinal, um milagre, sei lá. Nada…
Nenhum sinal de vida, nem sequer uma formiga para me indicar algo. Lentamente me dei conta do ridículo da situação, e procurei me acalmar e raciocinar:
- Tenho que sair daqui – falei ameaçadora, enquanto assoava o nariz com a mão… Vou chegar ao primeiro povoado, tomar um ônibus para Madri e enfrentar o fracasso. Levantando e arrumando a mochila nos ombros machucados, assimilei a imensa lição que estava recebendo, ou melhor, havia procurado…
Decidi me livrar de um pouco do peso, já que ia voltar naquele mesmo dia, e tirei da mochila vários objetos, material de curativos das famosas bolhas nos pés dos peregrinos (e não tive nenhuma!), cremes, muda extra de roupa, deixando apenas o mínimo necessário.
O Paulo, então, é um grande mentiroso! Me apavorou com bolhas e me fez trazer agulha para costurá-las, que horror, como se eu fosse ter coragem para tanto; o papo furado de anjos e demônios. O que será que pretendia comigo, sabendo que na volta poderia desmascará-lo?
Que teatro ridículo, pensei revoltada. Um guiazinho de merda é o que ele é. Esse mestre nem deve existir, deve ser técnica de marketing para vender livros. Quem sabe não seria melhor combinar com Marli de ficar em Madri ou em Santander durante o resto do mês e deixá-los pensando que estou fazendo o Caminho? Enfim, a vida é minha e não devo explicações a ninguém…
Essa me pareceu uma idéia brilhante, que resolveria todos os problemas! Sim, claro, nem preciso contar a ninguém. A lição é só minha e não preciso me humilhar publicamente, pensei, sentando de novo no chão para articular melhor sobre como concretizar esse projeto...
Olhei os montes áridos e cheios de pedras vermelhas que me cercavam; o sol brilhava inclemente no azul do céu… Até onde minha vista podia alcançar, nem um arbusto, nem um verde, nem sombra de vida, nada se mexia no céu sem nuvens.
- Que terra maldita essa aqui. Morreu e não sabe – ironizei com raiva. – Talvez seja melhor ficar os dias que me faltam numa simpática pensãozinha de um povoado qualquer e até aproveitar para escrever um livro.
Estudei o mapa e vi que faltavam setecentos quilômetros até Santiago; a próxima cidade se chamava Fromista, onde pretendia chegar e ficar incógnita uns quinze dias. Em volta de mim, espalhados no chão, salmos rasgados e a colcha estraçalhada que deixava de herança para o próximo idiota que passasse por ali.
Tenho 700 quilômetros de vaidade e orgulho, pensei, me examinando honestamente. Que horror, tantos anos trabalhando internamente para me livrar dessas características e ai estavam elas, intactas.
- Setecentos quilômetros… Me senti presa, dentro da armadilha criada por mim mesma. O desejo era de voltar para casa, mas a vaidade e o orgulho não permitiam… Chorei rendida. Fui vencida… ninguém precisa saber, mas EU sei que fui vencida, não só pelo Caminho, mas principalmente pela vaidade que não me permite fazer o que quero: voltar para casa…
De repente me lembrei de Paulo [Coelho], de sua conversa ridícula sobre encontros com demônios e anjos pelo Caminho… Olhei receosa a minha volta sentindo uma tênue presença, talvez criada pela minha imaginação.
- É verdade – murmurei. – Aqui está o meu demônio… e o nome dele é VAIDADE.
Constatando a minha impotência, olhei mais uma vez tristemente para o mapa. Se eu desistir ninguém vai saber, mas “eu” perderei o respeito que consegui sentir por mim durante todos esses anos. Que fazer, meu Deus? Não agüento mais viver esse pesadelo e também não me permito desistir. Finalmente, chorando de impotência, vi que só me restava uma alternativa: seguir…
- Vou chegar! Nem que morra pelo caminho, eu vou continuar por causa dessa merda de vaidade imensa que me aprisiona. Desisto! Sou impotente perante mim mesma… nada do que fiz adiantou!
Levantei dolorida e decidida a ir de uma vez, enquanto examinava o corpo, arranhado pelos espinhos pequeninos da vegetação rala e rasteira; me arrumei o melhor que pude e levantei a mochila, ligeiramente mais leve. Ao colocar o chapéu de abas largas, observei um passarinho que dava voltas no ar…
Olhei extasiada para o primeiro sinal de vida que via em muitas horas. Subitamente, ele aproximou-se e pousou na mochila já em meus ombros… Parei de respirar, estarrecida. Fiquei imóvel durante o que pareceu uma eternidade.
Muito lentamente, fui virando a cabeça para não assustá-lo, enquanto o ouvia cantar; a cada segundo que passava, uma certeza louca penetrava em meu coração: é um sinal… É o Universo me respondendo, falando comigo, é meu Amigo que finalmente me ouviu!
Durante hora e meia andei acompanhada pelo passarinho, que ora pousava em mim, ora se afastava para um pequeno vôo, voltando alegremente em seguida. E tudo à minha volta havia mudado. O dia estava lindo! A natureza, antes gasta e árida, me aparecia agora uma velha senhora cheia de sabedoria e vida, com muitas histórias para contar, tentando me transmitir seus segredos seculares…
"A brisa suave trazia de longe o doce perfume das ervas e o silêncio me apaziguava, e agora desviava o pé quando encontrava qualquer inseto... percebendo-os como uma das infinitas formas da manifestação do Divino. 0 planeta emanava sacralidade. E me senti integrada ao Todo, plena e parte incontestável do Todo!".
[Extraído de 'A Magia do Caminho Real’, p. 70/77. Anna Sharp. Edit. Rosa dos Tempos].
Nota: Se quiser ver o relato na íntegra, (Clic): 'A Magia do Caminho Real’.